Em alguns lugares do mundo, água tem dono - e quem quiser usar
precisa pagar caro. Saiba por que devemos fazer de tudo para evitar a
privatização dos recursos hídricos.
por raquel sodré
A água está acabando. Mas antes de acabar, ela vai ficar mais
rara. E cara. Em algumas regiões do planeta, água já vale ouro - e tem
gente ganhando muito dinheiro com isso. Quando a água deixa de ser um
recurso natural público, direito de todos, e passa a ser um produto,
acontece o que chamamos de “comoditização”.
Existem várias formas de comércio de água. “O que eu temo é que
elas fiquem tão comuns que a gente nem perceba quando a água não for
mais nossa, nem da comunidade, nem das próximas gerações”, diz Maude
Barlow, co-fundadora do Blue Planet Project, organização que trabalha em
nível internacional para garantir o direito humano à água. É preciso
muita força nos remos para contrariar a maré da privatização.
a fonte do problema
Não é de hoje que a água é tratada como produto. Conheça a história recente do fenômeno
A comoditização da água começou nos anos 1990, quando o Banco
Mundial (organização financeira internacional que empresta dinheiro a
países em desenvolvimento e economias fragilizadas) promoveu os serviços
de água no mercado mundial. Naquela década, com o boom da privatização,
o Banco convenceu alguns países que privatizar a distribuição de água
para a população era uma boa forma de arrecadar fundos. Nos países que
decidiram adotar essa prática, o Estado ainda era o proprietário da
água, mas eram empresas privadas que cuidavam de sua distribuição para a
população (e eram donas também das instalações necessárias para o
serviço). Eram as chamadas “parcerias público-privadas” nos serviços de água.
O problema disso era que, para ter lucro, as empresas que
dominavam o serviço subiram os preços da água que chegava às torneiras
das pessoas. O povo sentiu no bolso e protestou. A insatisfação fez com
que várias cidades comprassem de volta o direito de assumir o controle
da água. “Só na França, 40 municípios, incluindo Paris, tornaram a água
pública novamente”, diz Barlow.
Além do surgimento das parcerias público-privadas para a gestão da
água, os anos 1990 trouxeram a moda da água mineral (nas décadas
anteriores, água engarrafada era luxo). Com o passar do tempo, o costume
ficou ainda mais popular. “Chegamos ao ponto de ter algo como 260
bilhões de litros de água engarrafada em garrafas de plástico no ano
passado. Há países que acham que não precisam oferecer um serviço de
água limpa para os cidadãos, porque as pessoas podem simplesmente
comprar água engarrafada”, diz Barlow.
Outra forma de privatizar e restringir o acesso à água são os chamados "water tradings"
(expressão em inglês para “trocas de água”) que funcionam mais ou menos
assim: um país emite licenças para o acesso à água (por mineradoras,
por empresas de água mineral, por agronegócios etc). Então, essas
licenças são convertidas em direito à propriedade. Assim, as empresas
passam a poder comprar e vender esse direito à água no livre mercado -
como se fosse soja ou petróleo. O Chile e alguns estados dos EUA são
exemplos de lugares que fizeram isso.
A Austrália também fez water tradings, e lá o sistema foi um
completo desastre. Mas, quando ele surgiu, em 1994, parecia promissor. O
país passava por períodos de seca na época, e o governo pensou que os
water tradings serviriam como incentivo para que empresas e agronegócios
economizassem água, pois, dessa maneira, a água que sobrasse podia ser
vendida. Mas o que aconteceu de verdade foi que as grandes empresas
engoliram as pequenas e os grandes agronegócios arrasaram os pequenos
produtores. Entraram em jogo também os grandes investidores, e depois os
investidores internacionais.
“O preço da água subiu dramaticamente em dez anos, ao ponto de
surgirem as figuras de cowboys corretores de água, que fizeram rios de
dinheiro”, conta Barlow. Foi mais ou menos como a bolha imobiliária que,
segundo especialistas, vivemos agora. Só que, em vez de a especulação
ser em cima de imóveis, era em cima de fontes de água. O resultado foi
que, quando o governo federal quis comprar de volta os direitos sobre a
água do país para salvar da seca a bacia Murray-Darling, não conseguiu
pagar o preço que as empresas cobravam.
A água também pode ser comprada por meio dos “land and water grabs”
(ou “‘abocanhados’ de terra e água”). Nos acordos desse tipo, uma
empresa ou um governo rico compra grandes quantidades de terra em um
país mais pobre e reivindica o direito à posse da água dentro daquele
terreno. Segundo Maude, na África, há um território equivalente a três
Grã Bretanhas que foi comprado por países ricos, investidores
internacionais, fundos de cobertura, planos públicos de aposentadoria,
dentre outros. “É uma nova forma de colonialismo”, comenta.
Normalmente, a água comprada em um país permanece dentro daquele
país, mas legalmente pertence a um agente de fora. Atualmente, alguns
poucos países do Oriente Médio compram água do exterior, mas a questão,
segundo Maude, é muito controversa. No Canadá, em 1998, o governo de
Ontario deu uma permissão para que uma empresa privada vendesse água do
Lago Superior para abastecimento e enviasse para a Ásia para
engarrafamento. O governo dos Estados Unidos interveio e Ontario
cancelou a licença. Atualmente, somente em situações de emergência -
como as frequentes secas sofridas pelo sudeste dos EUA - a água é
transportada em caminhões pipa para o país vizinho.
Água virtual
Você consome muito mais água do que imagina
Na hora de calcular a água que vai de um país para o outro, também é importante por na conta a “
água virtual”.
Trata-se de todos os recursos hídricos gastos para a produção de uma
coisa. “Se você come um bife no almoço, estará consumindo uma
quantidade inacreditável de água
[veja mais no nosso quiz],
que foi necessária para criar o gado e preparar a carne. O Brasil é um
grande exportador de água virtual em biocombustíveis, carne e arroz”,
diz Maude Barlow.
Saber mais sobre a água virtual comercializada em cada produto não
é desperdício. A conscientização serve para deixar mais clara a
situação do comércio internacional de água. No passado, a pressão
popular foi imprescindível para desacelerar a privatização e pode voltar
a ser um grande trunfo na luta pelo direito à água. Para Maude Barlow,
os cidadãos precisam fazer sua parte para garantir que, no futuro, a
água não esteja completamente nas mãos de empresas. “Se essa tendência
não parar, veremos mais e mais gente morrer por falta de água. Agora
mesmo, mais crianças morrem de doenças trazidas pela água do que de
qualquer forma de violência, até guerras”, diz a autora.
O problema também é dos brasileiros. Apesar de termos uma das
maiores bacias hidrográficas do mundo, o Brasil também sofrerá as
consequências de nosso uso desenfreado de água se não tomarmos cuidado.
“Digo sempre que vocês precisam olhar para essas políticas [de acesso à
água], porque vocês têm secas terríveis em seu país. Vocês estão secando
a água de superfície rápido demais. O Brasil, como o Canadá, tem o mito
da abundância e pensa que sua água nunca irá acabar. Mas isso não é
verdade, e secas como as que estamos vendo em São Paulo, por exemplo,
mostram isso”, conclui Maude.
gráfico água virtual
Veja quantos litros de água são usados para se obterem diferentes produtos:
*Uma pessoa bebe de 2 a 4 litros de água por dia
Fonte: ONU
Azul da
cor do mar
Saiba o que uma cidade precisa ter para se tornar uma “Blue City” e
virar referência mundial em bom uso dos recursos hídricos
Transformar a água do mundo em uma “commodity” é uma tendência
que vem desde os anos 1990. Mas não é todo mundo que se conforma com
isso, e algumas pessoas não estão dispostas a deixar barato - ou caro,
considerando os preços que a água alcança no mercado internacional. Para
lutar contra a privatização de um dos nossos maiores recursos naturais
da Terra, surgiram as Blue Cities.
Distribuir o título de “cidade azul” é uma iniciativa da
organização Blue Planet Project, fundada pela canadense Maude Barlow,
que luta por uma nova ética hídrica mundial. Para “colorir-se”, a cidade
deve se comprometer a reconhecer a água como um direito humano, um bem e
um serviço público - o que significa não privatizar nem seus serviços
de distribuição. O lugar também precisa priorizar uma boa qualidade de
água encanada, em vez de incentivar o consumo de água engarrafada.
Depois de assumir o compromisso internacional de ser azul, a
cidade deve traçar um plano. “Quem ainda não tem água tratada e
saneamento básico? Como podemos substituir a água engarrafada nos
prédios e eventos públicos? Se não há violações ao direito humano à água
naquela comunidade, a cidade deve encontrar formas de ajudar
comunidades sem água em outros países”, sugere Barlow.
O projeto já começou a render frutos. ”Nós conseguimos parar a
privatização da água em algumas cidades e ganhamos a luta contra
empresas de água engarrafada”, conta a ativista. Mas, para ela, o maior
benefício das Cidades Azuis é a conscientização que o processo leva aos
habitantes da cidade, além da consciência de que a água é um bem
precioso e que está em nossas mãos protegê-la.
O projeto começou no Canadá, que atualmente já tem 17 cidades azuis.
Berna, na Suíça, foi a primeira fora do país e
Cambuquira
- uma das estâncias minerais do Sul de Minas - tornou-se a primeira
Blue City da América Latina no dia 7 de junho. “Cambuquira é uma cidade
de valor excepcional, mas que infelizmente caiu no descaso público. Com a
exploração predatória (das águas minerais da cidade), temos diminuído o
volume de água possível de voltar à atmosfera na forma de
precipitações. Além disso, o engarrafamento tem gerado situações em que
as nossas fontes ficam sem maiores cuidados, estando sujeitas a danos
irreparáveis. Aliando a luta cambuquirense a uma luta internacional,
ganhamos um respaldo ainda maior, e acreditamos que esse é o caminho”,
declara Ana Paula Lemes de Souza, presidente da ONG Nova Cambuquira.
“O título muda o olhar das pessoas e mostra que a cidade está
tendo um comportamento de proteger as nossas águas. A maior vantagem
disso, além de dar visibilidade para o município, da proteção e do
cuidado com a água, é estimular o cidadão a perceber o valor dessa
água”, declara Evanderson Xavier, prefeito de Cambuquira. Em um primeiro
passo como Cidade Azul, a prefeitura está agora trabalhando em um
projeto de saneamento básico para a cidade - depois de ter inaugurado,
em março deste ano, um sistema público de tratamento e distribuição de
água que já atende 80% da população.